Na região mais ao norte do Brasil, a terra dos índios Yanomami já foi um paraíso natural. Mas, desde a década de 1970, essa área dentro do bioma amazônico tem atraído uma onda de forasteiros em busca de ouro – e os resultados têm sido devastadores.
Cobrindo quase 10 milhões de hectares nos estados de Roraima e Amazonas, a Terra Indígena (TI) Yanomami é a maior área indígena do Brasil, medindo o dobro da Suíça. Estima-se que 38.000 Yanomami vivem atualmente na região e em um território indígena adjacente, na fronteira com a Venezuela, onde pelo menos um grupo vive em isolamento voluntário.
Como uma comunidade baseada em agricultura familiar, formada por agricultores, caçadores e coletores, os Yanomami acreditam que a floresta é uma entidade viva – uma entidade agora sob a ameaça da ganância desenfreada de forasteiros. Atualmente, a mineração em terras indígenas no Brasil não é permitida: portanto, qualquer ouro extraído dessas regiões é classificado como extraído ilegalmente e, quando comercializado, vendido ilegalmente.
Nos anos 1990, quando a jornalista investigativa Kátia Brasil morava em Roraima, ela costumava visitar as terras Yanomami regularmente. “À época, vi aquele território intacto, com uma floresta exuberante, nativa, cheia de biodiversidade”, relatou Kátia Brasil à GIJN.
Desde então, ela testemunhou uma drástica mudança na paisagem. “Hoje, quando a gente olha para o território Yanomami, só se veem buracos, cicatrizes dessa destruição provocada por uma cadeia ilegal que envolve pessoas de diversas áreas”, explica. Essa mineração também tem outras implicações, possivelmente fatais. Recentemente, duas crianças Yanomami morreram afogadas em um rio perto de onde garimpeiros ilegais operavam e, enquanto as autoridades ainda investigam o incidente, um líder indígena local disse que os meninos foram sugados para dentro da máquina de dragagem dos mineiros enquanto tomavam banho no rio.
Brasil vive atualmente em Manaus, uma cidade de dois milhões de habitantes que fica às margens do rio Amazonas, onde dirige a agência de jornalismo investigativo Amazônia Real desde 2013, junto com sua colega Elaíze Farias. A agência tornou-se conhecida investigando os temas mais urgentes da região amazônica e, em agosto, a dupla recebeu uma menção especial da Associação Brasileira de Jornalistas de Investigação, a Abraji.
Ao longo dos anos, a jornalista se manteve atenta à questão da mineração ilegal na TI Yanomami, cobrindo-a ocasionalmente, mas não era fácil. Dados sobre as empresas envolvidas na cadeia do ouro eram, e continuam sendo, quase inacessíveis. Não por acaso a maior parte da cobertura nacional e internacional sobre o assunto foca nos garimpeiros, que estão em uma ponta da cadeia, em detrimento de seus demais elos.
Embora a exploração de ouro na TI remonte aos anos 70, a situação piorou significativamente nos últimos anos. Isso se deve a vários fatores, incluindo um aumento global no valor do ouro e as políticas permissivas do presidente brasileiro Jair Bolsonaro, um populista de direita que assumiu o cargo em janeiro de 2019. Bolsonaro tem promovido consistentemente os interesses de grupos empresariais e até mesmo a apreensão ilegal de terras de comunidades indígenas e iniciativas ambientais. O governo de Bolsonaro também está tentando aprovar um projeto de lei que permitiria a mineração e outras atividades econômicas em terras indígenas.
Quem compra? Quem vende?
Quando Brasil decidiu que era hora de se aprofundar no assunto, duas perguntas guiaram a sua pesquisa: quem compra o ouro da terra indígena Yanomami? E quem o vende?
“Nós precisamos dar uma resposta para a sociedade sobre esse garimpo ilegal que está afetando de uma forma terrível a população indígena, além de estar destruindo o território”, ela diz.
A mineração de ouro polui rios e terras com mercúrio, o que causa danos aos ecossistemas e à saúde das comunidades locais. É também uma das principais causas de desmatamento. Nos primeiros dois anos do governo Bolsonaro, 4.383 hectares de floresta foram perdidos no território Yanomami – um número maior do que a área perdida na década entre 2009 e 2018.
O momento foi fortuito quando, no começo de 2021, a Amazônia Real recebeu o financiamento da organização não governamental Observatório do Clima e da fundação Re:wild para transformar a ideia em ação. Brasil logo convidou a Repórter Brasil, organização de jornalismo investigativo com sede em São Paulo, para se juntar ao projeto, com base em sua experiência em investigação de cadeias produtivas.
Após quatro meses de trabalho de uma equipe de 21 profissionais das duas organizações, o resultado final foi publicado: uma série multimídia de sete reportagens especiais revelando o envolvimento de políticos, funcionários públicos, proprietários de aviões, joalherias de luxo e narcotráficantes, nesta rede que supostamente lucra com ouro ilegal.
Dois caminhos, uma equipe
Desde o início do projeto, a equipe decidiu dividir o trabalho em duas frentes. A equipe da Amazônia Real seria a responsável pelas investigações de campo no território Yanomami e em Boa Vista, capital do estado de Roraima. Enquanto isso, a equipe da Repórter Brasil se encarregaria de rastrear as empresas compradoras e a cadeia do ouro fora do território, conforme explica Ana Magalhães, jornalista investigativa e coordenadora de jornalismo da Repórter Brasil.
Mas, embora a parte investigativa do projeto funcionasse separadamente, as decisões editoriais foram tomadas coletivamente. “A gente fazia uma reunião semanal com toda a equipe – Amazônia Real e Repórter Brasil. Isso nos permitiu ir pouco a pouco entendendo as descobertas e decidindo o caminho juntos”, diz Magalhães.
Técnicas investigativas
Foi fundamental para o sucesso do projeto um sobrevoo panorâmico sobre a TI Yanomami, feito pela jornalista Maria Fernanda Ribeiro e o fotógrafo Bruno Kelly, para que pudessem ver e registrar a extensão dos danos ambientais. Eles usaram duas câmeras DSLR com lentes fixas e zoom para fotografar e gravar vídeos.
Embora eles soubessem que essa etapa seria importante para ver a devastação que a mineração causou, o voo exigiu uma preocupação com a situação da COVID-19, levando em consideração que a comunidade que estavam cobrindo havia sido duramente atingida pelo vírus e os altos níveis de infecção do Brasil na época. “A gente analisou todos os prós e os contras de fazer um sobrevoo no meio da pandemia”, observa Brasil. A equipe seguiu um protocolo rígido de biossegurança, incluindo testes antes e depois do voo.
Ribeiro diz que o contato com a comunidade foi vital. “Checamos com as lideranças Yanomami a localização dos pontos críticos de garimpo, então quando decolamos o piloto já sabia por onde passaríamos”, explica Ribeiro.
Ao chegarem aos arredores da terra indígena, logo avistaram a floresta devastada pelo processo de extração e – inesperadamente – muitas outras aeronaves. Na opinião do piloto, as outras aeronaves estavam voando baixo, sob o radar, porque não tinham autorização para estar lá. “Não imaginava que encontraríamos tantos helicópteros e pequenos aviões sobrevoando ali, clandestinamente”, diz Ribeiro.
Em um certo momento do sobrevoo, um pequeno avião tentou interceptá-los. “Ele começou a circular embaixo da nossa aeronave em uma espécie de intimidação”, relata a jornalista. O piloto foi questionado via rádio sobre quem estava no avião, à que ele respondeu ‘uma equipe de saúde’, na tentativa de proteger o grupo. “Foi um momento de muita adrenalina”, conta Ribeiro. Em outro ponto, decidiram não voar tão baixo quanto gostariam, pois o piloto sentiu que eles estariam expostos a tiros daquela distância. “Ao tomar decisões, tivemos respeito com a nossa segurança e a do piloto”, destaca ela.
A pandemia, questões de segurança física e os altos custos influenciaram a decisão da equipe de evitar uma visita ao território indígena por terra.
Outro fator complicador é como o jornalismo ambiental piorou no Brasil na última década. Em 2021, o Brasil foi classificado como 111º (entre 180 países) no Índice Mundial de Liberdade de Imprensa da Repórteres Sem Fronteiras, entrando na ‘lista vermelha’ de países em que a situação da liberdade de imprensa é rotulada como “ruim”. Em 2010, o Brasil ocupava a 58ª posição.
Explorando os dados
No fronte de investigação da cadeia de suprimentos, a equipe mergulhou em pesquisas sobre empresas que negociavam o ouro. A escassez de dados fez com que os jornalistas começassem quase do zero. “Acho que o mercado de ouro é o mais difícil de ser investigado no Brasil, pelo menos dos mercados que a Repórter Brasil já investigou. É surrealmente pouco transparente, sobretudo no que tange ao mercado de exportação,” afirma Ana Magalhães. Ela acrescenta que enviaram solicitações de dados via Lei de Acesso à Informação (LAI) a várias agências, empresas e associações, sem sucesso.
Após um mês de pesquisas, resolveram abandonar a ideia de produzir uma peça sobre exportação de ouro. Ao mesmo tempo, avançaram bastante nas pesquisas sobre outro elo da cadeia, as Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs): empresas que compram ouro de intermediários, que atuam no mercado financeiro e são autorizadas a realizar compras pelo Banco Central do Brasil.
A equipe começou analisando denúncias do Ministério Público contra as DTVMs. Porém, o que se revelou fundamental para a reportagem foram dois inquéritos da Polícia Federal, aos quais a equipe teve acesso por meio de LAI.
Os jornalistas examinaram 6.000 páginas de inquérito policial, em busca de trechos referentes a DTVMs. Esses documentos continham depoimentos dos investigados, fotos tiradas pelos policiais, resultados de perícias técnicas, comunicados internos entre diferentes departamentos da Polícia Federal, e outras informações importantes. Com esses dados, os repórteres mostraram como foi fácil para as DTVMs comprar ouro extraído da reserva indígena Yanomami, graças à fraca legislação que regulamenta o setor.
Magalhães destaca o auxílio da ferramenta CruzaGrafos, desenvolvida pela Abraji, e de um repositório de informações disponíveis publicamente, o Brasil.IO, na investigação das empresas envolvidas na cadeia de suprimentos. O CruzaGrafos é uma ferramenta de código aberto que reúne informações de diferentes bancos de dados, permitindo que os repórteres cruzem os dados e visualizem as conexões entre empresas e pessoas. “Ela facilita muito a vida para entender a composição societária de algumas empresas e as conexões entre elas. A gente a usou bastante”, diz Magalhães.
Por fim, uma terceira parte do projeto focou na ‘rua do ouro’, em Boa Vista, onde lojas vendem impunemente o ouro extraído ilicitamente das terras Yanomami. Maria Fernanda Ribeiro visitou algumas delas. Sabendo que enfrentaria um ambiente hostil para jornalistas, ela se fez passar por uma pessoa interessada em comprar joias.
“A gente queria filmar e documentar, mas também não podíamos chegar com a câmera e falando que éramos jornalistas, então ficamos ali quietinhos, filmando algumas coisas no celular de maneira muito discreta”, conta ela.
Em uma loja, Ribeiro testemunhou uma servidora pública tentando vender ouro da região Yanomami. Para Kátia Brasil, esse episódio destaca a importância do trabalho de campo. “A presença da repórter como testemunha ocular de um crime foi o grande diferencial dessa história investigativa”, diz ela. A matéria sobre a ‘rua do ouro’ suscitou outras denúncias sobre a mesma servidora, que foi demitida de seu cargo e colocada sob investigação.
A mineração ilegal de ouro é uma das muitas ameaças à floresta amazônica. Para repórteres interessados em cobrir o que está acontecendo na região, a equipe da reportagem “Ouro do Sangue Yanomami” compartilhou dicas sobre como fazer uma investigação na região e como se manter seguro ao reportar assuntos que podem apresentar graves riscos à segurança.
- Esqueça o que você acha que sabe sobre a região amazônica. “Especialmente quem não é da região. Para mim isso é um desafio, mas também o maior presente que cobrir a Amazônia te proporciona”, diz Ribeiro. “Você chega lá cheio de ideias e certezas, e quando você vê é outra coisa. Isso também é o trabalho de um repórter: ouvir as pessoas de maneira genuína”.
- Tenha um bom protocolo de segurança. “Tem que ser seguido à risca porque temos visto um recrudescimento da violência na região, nos garimpos”, alerta Magalhães. “Acho que tudo tem muita sintonia com o governo atual e seu discurso de ódio com relação a indígenas, quilombolas e trabalhadores rurais, sempre apoiando garimpeiros, ruralistas e pessoas que atuam na Amazônia sob a ótica predatória. A gente percebe isso em campo”.
- Planeje sua estadia com cuidado. “Às vezes o jornalista vem sozinho, pensando que vai alugar um carro, e depois pegar a estrada e ir a campo sozinho”, diz Brazil. “Hoje em dia não dá para fazer isso na Amazônia. É preciso muita preparação para evitar riscos ”.
- Colabore. “Acho que o aspecto mais relevante dessa parceria foi que ela permitiu que duas organizações unissem seus know-how e seus DNAs”, diz Magalhães. “Quando você une essas duas forças, que são complementares, é quando você é capaz de contar uma história completa. Foi muito incrível essa parceria”.
Elaize Farias, cofundadora da Amazônia Real, participará da Conferência Global de Jornalismo Investigativo, no dia 3 de novembro, no painel Investigando a Desigualdade. Outros painéis da GIJC se concentrarão em investigações de questões ambientais e indígenas.
Recursos adicionais
Por que cobrir o meio ambiente significa arriscar sua vida em muitas partes do mundo
Minhas ferramentas favoritas: Geo-jornalista Gustavo Faleiros
Guia GIJN/NAJA para Jornalistas Investigativos Indígenas
Sarita Reed é uma jornalista freelance multimídia brasileira, cobrindo principalmente questões ambientais e direitos humanos. Ela é formada em jornalismo pela UFRGS e possui mestrado em estudos de mídia pela Universidade de Maastricht. Seu trabalho foi publicado pela National Geographic Brasil, Diálogo Chino, Folha de São Paulo, BBC Brasil, entre outros.